terça-feira, 14 de outubro de 2008

De Drummond a Lispector

"Clarice,
veio em um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essêncial,
era Clarice viajando nele.
Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.
O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia um barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem invetar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.
Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de indentidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.
O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.
De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de CLarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosoforescentes, longos estepes
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.
Não podíamos reter CLarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possivéis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.
Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice."
(Carlos Drummond de Andrade)





*Quando o avião passou. Um gesto.*

Nenhum comentário:

Postar um comentário